Do direito de sorrir e o papel da Extensão


É incontestável o reconhecimento de que a Extensão contribui enormemente para a formação profissional do estudante, ao promover o diálogo entre o saber acadêmico e o saber popular, o (re)pensar da prática jurídica, de seus símbolos e de sua visão de mundo, da relação entre o discurso e a prática, com o escopo de descer da torre de marfim e romper os muros – simbólicos e físicos – que distanciam a universidade da sociedade, tanto na composição acadêmica como nos temas e pontos de vista debatidos no seio acadêmico.

Pois bem, a formação de profissionais-cidadãos, cientes de sua responsabilidade a ser exercida no meio social quando completar o curso é um aspecto essencial a ser considerado no momento de integrar ou não um projeto de Extensão. Porém, em meu caso, vislumbro na Extensão um papel de sensibilização e de formação pessoal muito mais intenso.

Quando verdadeiramente me desnudo e compreendo que minha realidade cultural, territorial e sócio-econômica é incapaz de abarcar a realidade de minha cidade, quando percebo que os meus espaços de interação social não são os únicos existentes e que há não apenas uma, mas inúmeras realidades possíveis sendo vivenciadas concomitantemente, então passo, enfim, a entender que minha visão de mundo não é a única – mas uma dentre várias – e que não é mais ou menos importante, mas passível de uma construção cultural que não se exime do diálogo de afirmação e de negação dos demais.

É quando entendo, no Direito, que os processos traduzem conflitos – e que o Judiciário muitas vezes não os apaziguarão, quando menos se esperar são, verdadeiramente, seus geradores e perpetuadores -, que incorporam vivências distintas, negação e afirmação de direitos, ausência e descaso estatal na efetivação de políticas públicas, que trazem sujeitos por detrás dos números processuais e das estatísticas: pessoas que riem, que choram, que desafiam a existência e que, em muitos casos, lutam incessantemente pela sobrevivência, que traduz o sentido de seu viver.

Nesse momento em que, por me compreender inacabado, estou ciente de que a vivência distinta de uma outra pessoa é capaz de me tocar, de me sensibilizar e de me impulsionar na busca pelas respostas relativas à utilidade que conferirei ao conhecimento que construo – a favor de quê e de quem, contra quê e quem, por exemplo -, concebo a minha existência política e a necessidade de promover uma atitude decisiva que mantenha o que já existe ou que busque sua superação, na busca de um amanhã possível que esta realidade está grávida.

Um relato que, particularmente, me sensibilizou, foi de uma senhora de 30 anos, moradora do Conjunto Habitacional Leningrado, em que atuei com o Núcleo Urbano do Programa de Educação Popular em Direitos Humanos Lições de Cidadania.

Na aplicação de um questionário durante o período de abril a junho de 2010, fui à casa de uma moradora que me trouxe para dentro de sua sala, ficou ela mesma de pé e me sentou na única cadeira que lá havia. Apesar de discordar inicialmente, logo compreendi se tratar de um gesto de afeição e de receptividade muito sincero – e bonito, em toda sua simplicidade.

Perguntando-lhe há quanto tempo morava ali, ela me disse que desde o segundo dia da ocupação, que se deu na Semana Santa de 2004. Questionei-lhe a razão de ter vindo para cá e ela me disse que foi um sonho de sua mãe. Havia entrevistado vários moradores até então e me surpreendi prontamente com sua resposta.

Meu ar de surpresa a divertiu instantaneamente e, sorrindo, me disse: Minha mãe teve um sonho de que havia um povo que precisava ouvir a palavra de Deus, por trás de um morro. Ao acordar, logo me chamou e me contou o que havia se passado – e disse que, no sonho, havia um caminho que lhe fora revelado.

Tomaram café, se arrumaram e foram refazer o caminho do sonho. Chegando ao lugar, bem afastado da área principal, no meio do mato, em cima de um morro estavam e viram, lá embaixo, os primeiros barracos da ocupação do Leningrado.

Movidas por esse sonho se mudaram para lá, viveram todo o processo de ocupação e hoje ainda moram na comunidade. Fiquei tão arrepiado na hora quanto agora, quando escrevo sobre isso.

Ela, professora, formada em Pedagogia na UFRN – única entrevistada que conheci que tinha formação formal superior completa -, conhecia Paulo Freire e falou um pouco sobre ele, ao que sentia lhe divertir ver minha surpresa em meu sorriso sobre a forma como ela falava dos princípios que ali eu buscava aprender e efetivar.

Quando lhe perguntei, adiante, sobre como avaliava sua casa, se era melhor ou pior do que o lugar onde vivia anteriormente, ela me contou sobre como enfrentou problemas em casa, seu pai violentava diariamente sua mãe, em razão da bebida, dentre outros problemas cotidianos de Mãe Luiza, comunidade mais organizada e com mais equipamentos públicos em funcionamento do que, inclusive, no Leningrado de 2012.

Porém, ela me disse uma frase que nunca vou esquecer: É, Lucas (nome de seu filho também, aliás), onde eu morava tinha mais quartos, outro banheiro, era maiorzinho, mas não se compara ao que eu tenho aqui hoje. Aqui eu tenho paz, aqui eu me sinto feliz, aqui eu sou completa. Sabe quando você tem um lugar que se sente tão bem, mas tão bem, que é o seu palácio? Pois é, aqui é um cantinho de topeira, mas é o meu palácio – e eu sou feliz aqui, não trocaria por nada neste mundo.

Esse foi o principal momento em que eu entendi que a Extensão cumpriria um papel fundamental na minha formação profissional, porém, mais – muito mais -, seria decisivo na minha compreensão de mundo e de como, no mundo, devo me portar e me posicionar para conseguir viver, satisfeito e realizado, o sorriso daquela mulher em vários outros rostos que ainda não sorriem. E somente assim o Direito hoje faz sentido pra mim: mais do que garantir o direito de sonhar, efetivar o direito de sorrir parece ser o desafio mais bonito pra minha carreira – o que só fui capaz de aprender na Extensão.

Lucas Sidrim

Discente do curso de Direito da UFRN

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